Por Ademar Lourenço
A série “Adolescência” segue entre as mais vistas na Netflix mesmo um mês depois de lançada. Ela chama a atenção para o universo dos chamados “celibatários involuntários” ou “incels”. A história é sobre um garoto de 13 anos acusado de cometer um crime contra uma menina. Os investigadores acabam tendo que entrar em um mundo de frustrações masculinas e misoginia pra desvendar o que aconteceu.
O roteiro é muito elogiado por não simplificar a tragédia que assola a vítima, o agressor, a família e a comunidade envolvida. Os episódios em plano-sequência exploram o ambiente e entram na intimidade dos personagens, uma ideia genial do diretor Philip Barantini. A atuação do protagonista, o estreante Jamie Miller, é espetacular e foge de estereótipos.
O problema que a obra aborda existe desde os primórdios da internet, no final dos anos 90. Naquela época, foi montada uma rede sofisticada para atacar mulheres e espalhar mensagens machistas.
Os meninos da “geração alpha” estão chegando na adolescência. Infelizmente, alguns estão sendo atraídos pela rede de ódio que já existia antes deles nascerem. O Iceberg Incel é um dos maiores perigos do mundo digital. Cada professor, cada pai, cada mãe e cada militante feminista deve conhecer a linguagem, os símbolos e comportamentos dessa rede masculinista. Não adianta “não querer divulgar”. Temos que conhecer os sinais de quem pode estar submergindo nesse imenso bloco de conteúdo doentio. Isso pode salvar vidas.
Duas décadas de masculinismo organizado na internet
Os mais jovens dificilmente vão entender o que era a Internet nos anos 2000. O acesso era feito pelos computadores, os smartphones só se popularizaram depois. Qualquer série ou filme poderia ser baixado de graça no Megaupload. Os chamados “internautas” procuravam conteúdo “navegando” de site em site.
Muita besteira se espalhava nas listas de e-mails ou no “Orkut”, primeira rede social que ficou popular no Brasil. Vídeos e músicas com um humor escatológico e violento viralizavam muito rápido. Não existia a ditadura dos algoritmos, tudo era repassado de pessoa para pessoa. Muitos dos que espalhavam esses conteúdos eram apenas curiosos que achavam o máximo ver coisas que jamais passaria na televisão.
Mas já existia o chorume ideológico que iria “politizar” a curiosidade mórbida de uma juventude deslumbrada com a diversidade de conteúdo da Internet. Olavo de Carvalho começava a organizar seu fã-clube virtual. O antipetismo tomava conta da comunidade “Brasil” do Orkut, com mais de um milhão de participantes. E os “masculinistas” faziam suas primeiras vítimas.
A inspiração inicial foi o crime cometido por dois adolescentes em Columbine no ano de 1999. Os jovens, que tinham problemas de saúde mental e sofriam bullying, promoveram um massacre na escola em que estudavam. Ali já estavam presentes a inspiração em filmes de ação, o machismo, o extremismo de direita e a desesperança com a humanidade. Foi o primeiro massacre escolar a ficar famoso. Infelizmente, crimes como esse se tornaram comuns nos Estados Unidos.
Não demorou para a “moda” chegar ao Brasil. Em 2005, um jovem chocou Brasília ao ameaçar estudantes de sociologia da UnB, especialmente as mulheres. Em 2011, um jovem fez um massacre em uma escola no Realengo, bairro do Rio de Janeiro. A violência foi especialmente dirigida às meninas. Foi aí que ficaram famosos os “chans”, fóruns em que o usuário permanece anônimo e as mensagens podem ter pouca duração. Era a festa de quem espalhava pornografia infantil ou planejava atentados. E de quem queria recrutar pessoas doentes para uma cruzada antifeminista.
A blogueira Lola Aranovich sofre ameaças desde essa época. Ela foi alvo de homens violentos e antissociais. Alguns tinham simpatias por coisas como nazismo e pedofilia. Ou seja, não havia a menor possibilidade de eles conquistarem um público amplo. Mas a rede machista da internet passou a usar uma tática que, devemos reconhecer, foi bem inteligente e bem aplicada.
Os algoritmos ajudam a radicalizar as pessoas
Em um vídeo que viralizou recentemente no TikTok, um adolescente dá uma flor a uma menina da mesma idade. Ele se abaixa para amarrar o sapato, pega a flor e vai embora. A menina fica com cara de tacho. Pode parecer só uma besteira de um menino imaturo, não é?
O vídeo é parte da primeira camada do Iceberg Incel. Aquela em que não há apologia à violência e a exposição das frustrações masculinas pode até despertar empatia. Em um vídeo, é dito que o homem não pode criar dependência emocional em seus relacionamentos. Outro sugere que, ao descobrir uma traição, o homem deve terminar o namoro. Até aí, nada parece suspeito.
Mas se olharmos as hashtags desses vídeos, vemos que tudo é parte de uma rede maior de conteúdos. As hashtags são palavras-chave que ajudam os algoritmos das redes sociais a “entender” os gostos das pessoas. Se alguém ouve vídeos sobre a banda Iron Maiden e nesse conteúdo tem a hashtag #heavymetal, o algoritmo vai registrar o gosto do usuário por este estilo musical.
É aí que começa o problema. O usuário começa a receber não apenas vídeos sobre Iron Maiden, mas também sobre a banda Cannibal Corpse, que tem um ritmo mais frenético e fala de temas mais sombrios em suas letras. O maldito algoritmo “sabe” que o usuário quer algo parecido com o que já curtiu, compartilhou e comentou. Mas o conteúdo deve ser cada vez mais intenso para manter o usuário na rede social.
Os masculinistas de Internet também sabem disso. Por isso propagam seu conteúdo em camadas. Tal como um Iceberg, a maioria enxerga penas a superfície. Mas podemos ir cada vez mais fundo. Ao submergir nesse mundo, a podridão vai aumentando de intensidade.
Por exemplo, um homem que acabou de terminar um relacionamento curte um vídeo no TikTok com a mensagem “siga em frente, você vai superar”. Mas aí o vídeo é marcado com a hashtag #redpill, um emoji com uma imagem de copo de vinho e outro emoji com um Moal da Ilha de Páscoa. São símbolos da cultura Incel. Depois da curtida, o algoritmo vai entregar ao usuário vídeos que tem as mesmas marcações, mas com um conteúdo mais extremo, permitindo ir mais fundo no iceberg.
Nesse exemplo, a simbologia usada é voltada a um público mais velho. Se o vídeo for voltado para a “geração alpha”, os emojis e hashtags serão outros. E garotos de 11 a 13 anos poderão ter acesso a todo tipo de bizarrice voltada a ensiná-los a odiar mulheres desde cedo.
As camadas do Iceberg Incel
A primeira camada é apenas chamariz para criar engajamento com as hashtags e servir de porta de entrada para conteúdos mais machistas. Na segunda, o sujeito já vai se deparar com o discurso “redpill”, que coloca nas mulheres e no feminismo a culpa pelas frustrações masculinas.
Segundo o discurso “redpill”, os homens são “feitos de otários” ao demonstrarem afeto por mulheres. Por isso, devem “tomar a pílula vermelha”, se livrando da “Matrix” que é o romantismo. Para esses influenciadores, o homem tem que ter uma postura autoritária e emocionalmente distante para manter a mulher “na linha”.
Em 2023, viralizou o vídeo do “calvo do Campari”, um sujeito que dizia saber o segredo para “conquistar as mulheres”. Ele é um dos pick-up artists, ou “artistas da sedução”. Alguns ficam ricos vendendo cursos com “técnicas” para um homem conseguir abordar uma mulher. Nessa camada do iceberg, ainda há uma preocupação em não cometer crimes. Mas o discurso de ódio já é bem presente.
O sujeito que viu vídeos do “calvo do Campari” às vezes não fica mais chocado com esse tipo de conteúdo e precisa de algo mais intenso para continuar preso na rede social. Aí o algoritmo vai entregar a ele algo sobre “MGTOW”. É uma sigla que quer dizer “Men Going on The Own Way”, ou “homens seguindo seu próprio caminho”. Esses aí já desistiram de ter uma relação funcional com as mulheres. Alguns pregam que o sexo só é compensatório se for com uma prostituta ou em um relacionamento de curta duração. A apologia à violência contra as mulheres já aparece, mas, na maioria das vezes, de forma implícita.
Se o sujeito já está viciado nesse tipo de conteúdo e realmente for um doente, ele acaba indo mais fundo e encontrando seus semelhantes. São os que não conseguem ter nenhum contato sexual com mulheres. Por isso o termo “incel”, ou “involuntary celibatarian” (celibatário involuntário).
Aí a coisa começa a ficar mais perigosa, pois nessa camada já tem homens dispostos a promover ataques reais. Alguns têm conhecimento de informática e podem, por exemplo, roubar dados bancários de mulheres, especialmente feministas. Outros se organizam para fazer ameaças em massa. E tem aqueles que acabam indo para escolas assassinar pessoas.
Advogados que defendem homens que estão sendo processados pela Lei Maria da Penha usam as comunidades dessa parte do Iceberg para divulgar seu trabalho. É realmente bem bizarro. Ali a apologia à violência é explícita e agressores são “acolhidos”. Inclusive nesses grupos foi organizado um abaixo-assinado para a revogação da lei que protege mulheres vítimas de violência doméstica.
Mas isso ainda não é o que existe de pior no Iceberg Incel. Os “homini sanctus” são exemplos do que a Internet tem de pior. Na camada onde eles se encontram, é comum o uso do fundamentalismo cristão. Na intepretação que essa gente tem da Bíblia, a mulher deve ser escrava do homem. Eles também falam do resgate de um passado idealizado, onde o gênero feminino estava no seu “devido lugar”.
Masculinidade exagerada e resgate de um passado idealizado são duas características do fascismo. E nessa camada, coisas como a defesa de Hitler, memes tirando sarro da morte de Marielle Franco, apologia às torturas contra mulheres grávidas na Ditadura Militar, entre outras coisas, são bem comuns. Os psicopatas assumidos se reúnem nas profundezas. Mas os conteúdos que eles produzem podem chegar a um público maior por meio das camadas mais superficiais do Iceberg.
O Iceberg Incel é uma sofisticada rede de conteúdos de mídia que trabalha em cima de um ideal de masculinidade que já existia na vida real. Os masculinistas da internet não inventaram o machismo. Mas o usam para recrutar um exército de fanáticos. E são ajudados pelos algoritmos das redes sociais. E quem lucra com o Iceberg Incel são as Big Techs, as grandes empresas de informática. Em resumo: o menino doente encontra seus pares, meninas ficam expostas a ataques e Mark Zuckerberg aumenta o seu já bilionário patrimônio.
adoecência (SIC) precoce ou tardia como tempestividade da sobrevivência indesejada